A ex-filha das estrelas em busca do direito de ser (amada) cuidada.
“Um movimento em tempo certo
Dois pavimentos do arquiteto
Eu feito curva e você vai reto
Desespero de ternura e afeto…”
(Ternura e afeto, de Nando Reis)
A ex-filha das estrelas em busca do direito de ser (amada) cuidada.
O (vetusto) Oitocentista Código Civil de 16, por ser extrato de uma sociedade com “pendores” de pudismo arraigado, entendia por bem classificar a filiação de acordo com a origem, ou seja, se era ou não fruto do matrimônio.
Assim, o filho legítimo era entendido como aquele havido na constância do casamento, e ilegítimo o advindo de relações extramatrimoniais. Nesse aspecto, os chamados ilegítimos dividiam-se em naturais e espúrios, sendo estes últimos classificados em adulterinos e incestuosos.
Com isso, os filhos que estivessem na categoria dos adulterinos e incestuosos não poderiam incluir em sua certidão de nascimento o nome do pai. Por consequência, em lugar do registro do nome paterno, deixava-se “consignar” as estrelas (asteriscos).
Mas novos tempos imorredouros e com ares de frescor iria invadir o direito posto, nessa onda do “novo” promulgou-se a nossa lei máxima, a Constituição de 1988. Em seguida, mas não tão novo assim, nascia o código de 2002, que embora pensado em 1975, trouxe novas verdades afetivas.
Ambos vislumbraram novos tempos baseados em novas formas de organizações familiares, e como se diz a comezinho: “A vida imita a arte e o Direito imita a vida”. Desse modo, consagrou-se em ambos (constituição de 1988 e código civil de 2002) a proibição de distinção entre filhos havidos dentro ou fora do casamento.
Registrou-se assim: “todos os filhos, independentemente da sua origem, terão os mesmos direitos e qualificações”. (§ 6º, art. 227 da CF); “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação. (Art. 1.596 do CC)
Nesse sentido, os olhos brilharam de emoção e satisfação, estava assim ESCRITO o reconhecimento do Princípio da inocência, que significa que se alguém precisa ser sancionado por uma atividade fora da união marital, certamente que sejam os adultos e não a criança. Eureka!
Louvores e clamores externados, vamos às consequências atribuídas pela lei.
Rei posto, rei morto. Morria a irresponsabilidade e nascia o dever de cuidar da PROLE, qualquer uma, advinda de qualquer relação. Houvesse ou não casamento.Houvesse ou não afeto. Então, o afeto começa a surgir como algo AFETO às relações familiares.
Mas o que é “amor” o que é o “afeto”?
Sentencia-se que o amor é um atributo do afeto. Já o Afeto para o Direito de família não apenas figura como um sentimento. Afeto é uma ação, uma conduta. É o cuidado, a proteção e a assistência.
Dali, nas relações familiares, o Afeto receberia força normativa tornando-se o princípio da afetividade o balizador de todas as relações jurídicas da família.
Mas para o leitor mais “SONHADOR” pode ser que esteja se perguntando: Ora, ora, e como ficam os deveres do casamento que ainda ilustram o novo código (civil de 2002)? Respira, o reconhecimento dos filhos de qualquer que seja a relação, não implica em sancionar a bigamia.
Em verdade, a monogamia sempre foi um valor jurídico e é até hoje. Ainda, no Brasil não se admite reconhecimento de direitos às famílias paralelas ou simultâneas, como sói serem conhecidas. O que se veda é a discriminação, ou seja, se dessa família sobrevier filhos o que não se pode dizer é que esses “são filhos de uma família paralela ou simultânea”.
Intuitivamente, pode-se ter filhos de famílias diversas, mas não se pode discriminá-los em razão do tipo de relacionamento.
Pois bem, agora o reconhecimento da filiação advinda de relações além das adstritas da matrimonial já é uma realidade. Resolveu-se um problema.
Mas e o afeto, e o cuidado? Eles nascem quando acontece esse reconhecimento da paternidade registral? Não, são dois fenômenos que não necessariamente coexistem.
Notem que dizem que a paternidade nasce com o convívio com o filho. Mas por vezes, mesmo do convívio estreito, o amor não aflora. Dentro do egoísmo de cada um, por vezes é difícil entender a necessidade do próximo. Amor não se pede, mas se cobra (com perdão do trocadilho).
Como se pode entender que alguém “sangue do meu sangue” não tenha a devida atenção e amor que deveria ser algo natural, inerente ao parentesco. Mas não é assim e todos sabem. Existe algo além dessa relação, além do mesmo sangue que corre nas veias dessa “família”. Como culpar alguém por não amar um filho? Mesmo que pareça uma idiossincrasia, a vida nos mostra que não é.
Então o que fazer? Será que vamos aderir a um novo tipo de negócio que está aquecendo o mercado japonês: o aluguel de pais, maridos, filhos e noivos[1]. Resumindo, aluga-se “personagens de uma família”, com o fito de formar uma família fictícia.
A mente “brilhante” por trás da inovação é o empresário e ator Yuichi
Ishii, a agência conta hoje com dois mil atores, que são contratados para fazerem as vezes de membros da família ou até amigos, e inclusive Yuichi também atua como pai de aluguel de uma menina, há nove anos. O empresário fala do seu negócio como se fosse um serviço de extrema relevância para a sociedade japonesa.
Vejam, se afeto em nosso ordenamento é reconhecido como um valor jurídico tão forte, capaz de desfazer vínculos biológicos entre familiares, a fim de trazer à tona a realidade dos vínculos familiares sob a ótica do afeto, este tipo de “negócio familiar”, praticado no Japão, não pode ser visto com naturalidade, sem qualquer tipo de crítica social.
Naturalmente surge o questionamento: Quem adoeceu, a sociedade que insiste em cobrar o estereótipo de pessoas para se enquadrarem em suas expectativas, ou as famílias que adoeceram a ponto de o abandono afetivo gerar a necessidade do aluguel de pai ou mãe para estancar a dor da ausência, sem acreditar na possibilidade humana da resiliência e da superação?
Quem viver verá! Mas por aqui, já algum tempo, borbulharam dessa premissa de “dever de cuidado”, as primeiras ideias sobre a indenização por abandono afetivo.
De antemão, é importante frisar que muito embora “abandono” e “afetivo” possa ser entendido como sinônimos de sensações, amor e outros sentimentos em relação à criança, o verdadeiro sentido relevante ao ordenamento jurídico é o respeito ao mencionado dever de cuidado, que se traduz em assistências de ordens diversas por parte dos pais para com seus filhos, uma vez que, hodiernamente sob o manto das legislações e doutrinas que versam sobre tal cenário o desamparo e desproteção a um filho se configura como ato ilícito indenizável, ou seja, passível de uma responsabilização civil aplicada àquele que desta forma agir.
Assim, desmistificando a exclusiva noção de esmero pelo bem-querer emocional da criança, visto que por mais estranho que se pareça a nenhuma pessoa é conferida a obrigação de amar outrem.
No entanto, a ausência do afeto não exclui a necessidade e obrigação dos pais com o cuidado e a educação, a responsabilidade e até mesmo a presença e a imposição de limites. Se não observadas essas “necessidades”, poderá aquele que deixou de observar essa premissa, ser condenado a pagar uma indenização por abandono afetivo.
Há muitos anos eu escutei uma frase que repito como verdade (absoluta) no direito-vida: “Os fatos humanos desvirtuam o direito”. (Nagib Slaibi Filho- Desembargador do TJRJ)
Nas palavras de Bauman, “o eu que ama se expande doando-se ao objeto amado. Amar diz respeito à autossobrevivência através da alteridade. E assim o amor significa um estímulo a proteger, alimentar, abrigar; e, também, à caricia, ao afago e ao mimo. Amar significa estar a serviço, colocar-se a disposição”.
Autorresponsabilizar-se, ainda que de forma mandatória, judicial é se expor para a sociedade e se impor uma reflexão sobre seu verdadeiro papel social. Onde será que foi parar o amor?
Dito isso, para os que percorreram esse texto e só leram “palavras”, sem nenhuma aplicação prática vinda de quem tem a responsabilidade sobre uma criança ou adolescente, pode desaguar no poder judiciário em busca de uma decisão onde o amor não pôde se impor, mas o cuidado é um dever jurídico.
[1] Disponível em: https://inews.co.uk/news/world/relatives-for-hire-family-romance-fake-actors-japanese-busi ness-loneliness-232622